Ancestralidade do brincar: o valor das brincadeiras para as primeiras infâncias indígenas
Jogos tradicionais, saberes ancestrais e o papel dos mais velhos revelam como o brincar fortalece identidades e vínculos nas infâncias indígenas
Publicado em 15/04/2025 01:04, por Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal

O brincar é um direito essencial na vida de todas as crianças — especialmente na primeira infância, fase decisiva para o desenvolvimento integral. Nessa etapa, o brincar vai além do lazer: é uma experiência de aprendizado, de troca e de construção de vínculos. No caso dos povos originários, essas vivências lúdicas também cumprem o papel de transmitir saberes ancestrais e fortalecer identidades culturais.
Os jogos e brincadeiras vivenciados na primeira infância nas comunidades indígenas estão profundamente entrelaçados com os modos de vida de cada povo. São práticas que resguardam tradições, reproduzem valores coletivos e promovem a aprendizagem por meio da oralidade, do corpo, da convivência e da conexão com a natureza. Em vez de separarem o lúdico do cotidiano, essas comunidades integram o brincar às atividades familiares e comunitárias, ensinando às crianças, desde cedo, o valor da coletividade, da escuta e do respeito ao tempo da vida.
O Brasil abriga uma das maiores diversidades socioculturais indígenas do mundo, com 305 etnias reconhecidas e mais de 274 línguas indígenas vivas, segundo o Censo Demográfico de 2010. Apesar de o Censo de 2022 ainda não ter atualizado oficialmente a quantidade de etnias e de línguas, a pesquisa já indica um total de 1.694.836 indígenas, o que representa 0,83% da população brasileira.
Essa pluralidade se expressa nas formas de cuidar, educar e brincar, práticas que variam profundamente de povo para povo. Ainda segundo o IBGE, o país soma mais de 240.841 mil crianças indígenas de até 6 anos de idade — 14,2% da população indígena total. A maioria dessas crianças vive na região Norte, onde os vínculos com a ancestralidade e os modos de vida tradicionais seguem sendo fundamentais para o desenvolvimento infantil.
Saberes que correm, pulam e se transformam
O brincar indígena não se organiza a partir de uma lógica escolarizada ou industrializada. Ao contrário, ele emerge de forma espontânea, incorporando elementos do ambiente, da memória coletiva e da observação dos mais velhos.Para as crianças indígenas, rios e matas não são apenas paisagens: são espaços vivos de aprendizagem, convivência com animais e encantamento.
É nesses cenários que acontecem as brincadeiras de caça simbólica, as corridas entre árvores, os jogos com sementes, folhas, barro ou pedras — práticas que ativam o corpo, mas também cultivam a escuta, a oralidade, o vínculo com os ancestrais e o respeito pela natureza. Esses gestos lúdicos, longe de serem apenas motores, são formas potentes de desenvolver autonomia, resistência física, espiritualidade e pertencimento à comunidade e ao território.
Os mais velhos como guardiões do tempo, da terra e do brincar
Nas comunidades indígenas, os mais velhos ocupam um papel central na construção das infâncias. Avós, anciãos e anciãs são reconhecidos como mestres do saber, guardiões da memória e figuras de referência fundamentais para o desenvolvimento das crianças — especialmente durante a primeira infância, quando vínculos afetivos e aprendizados culturais são estruturantes. São eles que transmitem histórias, cantos, gestos, mitos e valores, oferecendo às crianças referências de pertencimento e continuidade cultural. A escuta atenta, a convivência intergeracional e o aprendizado pelo exemplo fazem parte da pedagogia indígena, em que aprender é conviver e brincar é também preservar.
Essa relação próxima entre as crianças e os mais velhos fortalece laços comunitários e oferece proteção simbólica e afetiva. Ao mesmo tempo, reconhece nas infâncias indígenas não apenas o futuro das aldeias, mas a presença viva da ancestralidade. A brincadeira, nesse contexto, não se limita ao presente: ela ecoa os passos dos que vieram antes e projeta caminhos para os que virão.
Ameaças ao brincar tradicional
Esse brincar ancestral, no entanto, tem enfrentado ameaças. A invasão de territórios, o desmatamento, a presença cada vez maior de mídias digitais, a pressão por escolarização precoce e os processos de urbanização forçada muitas vezes desconsideram o tempo próprio das infâncias indígenas e os modos tradicionais de ensinar e aprender. Os impactos são sentidos por todos, mas têm efeitos específicos para o desenvolvimento na primeira infância, período crucial de formação da identidade, das relações sociais e da aprendizagem.
Interrupções nos modos tradicionais de brincar e aprender impactam diretamente o desenvolvimento cognitivo, físico, socioemocional e cultural dessas crianças, justamente por elas estarem em uma fase de intensa absorção de saberes e vínculos com sua comunidade e território. Ao negar o valor dessas práticas, corre-se o risco de descontinuar saberes que foram transmitidos por gerações.
Reconhecer e valorizar o brincar indígena é, portanto, uma forma de defender os direitos das crianças em sua pluralidade. É também um chamado a escutar os povos originários sobre suas formas de cuidar, educar e conviver.
Fortalecer os direitos das múltiplas infâncias — especialmente nos primeiros anos de vida — é respeitar a diversidade e a ancestralidade de todos nós. Isso implica garantir políticas públicas que respeitem os modos de vida dos povos indígenas e assegurem que todas as crianças possam crescer brincando, aprendendo e pertencendo.