Como o ECA Digital pode afetar a relação de crianças de 0 a 6 anos com as telas

A legislação aplica-se a todo produto ou serviço de tecnologia da informação direcionado a crianças e a adolescentes no país

Published on 24/09/2025 02:41, by Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal

Criança sorrindo enquanto brinca de fazer bolhas de sabão ao ar livre

Proteger bebês e crianças dos 0 aos 6 anos, a chamada primeira infância, no ambiente digital é tão prioritário quanto fazê-lo no mundo físico. A lei 15.211/25, sancionada no último dia 17 de setembro pelo governo federal, é um instrumento valioso para garantir a segurança das crianças na internet. A nova legislação é a concretização do PL 2628, de 2022.

Chamada de ECA Digital (em referência ao Estatuto da Criança e do Adolescente), a legislação “aplica-se a todo produto ou serviço de tecnologia da informação direcionado a crianças e a adolescentes no país ou de acesso provável por eles, independentemente de sua localização, desenvolvimento, fabricação, oferta, comercialização e operação”, conforme aponta o artigo 1º da lei. 

Abaixo, destacamos alguns trechos da legislação que podem impactar diretamente a segurança e proteção digital de bebês e crianças na primeira infância.

Não recomendado para menores de 6 anos

Não só sites, como também outros tipos de conteúdos audiovisuais demandam acompanhamento. Uma outra ação, vinda na esteira do ECA Digital, é a proposta de criação de uma nova Classificação Indicativa “não recomendada para menores de 6 anos”. A iniciativa do Ministério da Justiça e Segurança Pública visa contribuir com a construção de um ambiente digital e midiático mais seguro. 

“Para subsidiar a implementação da nova faixa etária, será realizada uma consulta pública, por meio de um questionário direcionado ao setor. Serão ouvidos, por exemplo, responsáveis por serviços de streaming, de jogos digitais, de redes sociais, de inteligência artificial, entre outros”, aponta nota no site oficial do MJSP.

Algumas medidas do ECA Digital que podem ter impacto na primeira infância

Apesar de não ter especificações para quem está na primeira infância, diferentes pontos da lei convergem no objetivo de proteger quem está nessa fase da vida. Ao estabelecer obrigações para serviços digitais, jogos, aplicativos e redes sociais, a nova legislação lança luz sobre a necessidade de acompanhamento mais próximo das crianças nesse ambiente, assim como traz a responsabilização para diferentes atores dentro desse ecossistema como as grandes plataformas de tecnologia e o poder público. 

Verificação de idade confiável 

Ter um dispositivo eletrônico à disposição deixou de ser algo difícil. Hoje, as crianças acessam esses aparelhos e, consequentemente, a internet com grande facilidade. O desafio está em definir as idades adequadas para o consumo de determinados conteúdos, que muitas vezes acabam sendo exibidos a crianças muito pequenas sem que cuidadores ou responsáveis consigam acompanhar de perto.

Uma das medidas propostas pelo ECA Digital é uma exigência mais rígida sobre confirmação da idade. Bebês e crianças de até 6 anos dificilmente irão criar os próprios perfis em redes sociais, por exemplo, mas a medida cria uma nova camada, direcionada aos responsáveis e cuidadores, ao exigir uma autodeclaração de idade. 

Essa verificação evita que crianças muito pequenas acessem a conteúdos impróprios para a faixa etária, visto que os provedores deverão utilizar maneiras seguras de saber se o usuário é ou não criança. 

Controle parental e supervisão 

É dever de quem cuida de crianças pequenas garantir que elas não sejam expostas a riscos digitais. Crianças de 0 a 6 anos ainda não têm consciência plena de sua identidade ou mesmo noção do que seja privacidade. O direito à privacidade está assegurado por diversas leis no Brasil, incluindo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso X, que garante a inviolabilidade à vida privada, intimidade, honra e imagem de todas as pessoas, o que também inclui crianças pequenas. 

O compartilhamento excessivo de imagens tem um nome: sharenting. O termo é uma junção de duas palavras em inglês: Share (Compartilhar) e Parenting (Parentalidade) e se caracteriza pelo hábito de compartilhar de maneira frequente e exagerada a imagem dos filhos. 

Apesar do ímpeto que muitas famílias têm em compartilhar imagens de seus bebês e crianças pequenas, quando feita de forma indiscriminada essa ação expõe elas a diferentes riscos, tornando-as vulneráveis a serem vítimas de pronografia infantil, por exemplo. Além disso, crianças são sujeitos de direitos desde o começo da vida, e devem ter esses direitos respeitados e preservados. 

Para que denúncias possam ser feitas, os serviços de tecnologia deverão criar canais acessíveis onde as pessoas possam fazer alertas sobre esse tipo de situação.

Resposta rápida a conteúdos prejudiciais 

Recentemente, o tema da erotização circulou por muitas conversas online e offline. Depois do estrondo causado pelo vídeo “Adultização”, publicado pelo influenciador digital Felca, grande parte da sociedade entendeu a necessidade de criar mecanismos que protejam as crianças na internet. 

Foi o vídeo de Felca que impulsionou as discussões que fizeram o PL 2628, parado desde 2022, se tornar a lei aprovada no último 17 de setembro. 

Sobre esse risco, a nova legislação demanda que conteúdos envolvendo abuso, exploração infantil, pornografia, violência etc sejam removidos rapidamente das plataformas após notificação. Essa é uma proteção que abrange não apenas as crianças, mas toda sua família, que sofre com os impactos desses casos. 

Apesar de prever ações protetivas por parte de produtos e serviços de internet, a legislação também envolve outras esferas do cuidado. “O disposto neste artigo não exime os pais e responsáveis legais, as pessoas que se beneficiam financeiramente da produção ou distribuição pública de qualquer representação visual de criança ou de adolescente e as autoridades administrativas, judiciárias e policiais de atuarem para impedir sua exposição às situações violadoras previstas no caput deste artigo”, aponta o parágrafo 1, do artigo 6º da legislação. 

Para o recebimento dessas denúncias, as plataformas deverão criar canais acessíveis para responsáveis, cuidadores, ministério público e qualquer pessoa que encontre conteúdo malicioso ou nocivo na internet. 

Dinheiro, consumo e infâncias 

Um dos grandes desafios quando se trata de proteger crianças no ambiente digital é a extensa oferta de conteúdos publicitários para essas faixas etárias. Mesmo que queiram, muitas vezes os responsáveis não conseguem driblar inteiramente essas ações, impedindo que elas alcancem as crianças pequenas. 

A nova legislação proíbe o uso de dados para direcionar anúncios para crianças, o chamado perfilamento, assim como publicidades que explorem vulnerabilidades, que sejam enganosas ou predatórias para quem está nessa fase da vida. 

Muitos adultos expõem bebês e crianças pequenas na internet com o objetivo de lucro. Dada a maneira como a economia na internet está estruturada, muitas dessas práticas desrespeitam a dignidade e integridade das crianças. 

“Art. 23. São vedados aos provedores de aplicações de internet a monetização e o impulsionamento de conteúdos que retratem crianças e adolescentes de forma erotizada ou sexualmente sugestiva ou em contexto próprio do universo sexual adulto” 

A lei trata como monetização a remuneração, direta ou indireta, de usuários de internet pela publicação, postagem, exibição, disponibilização, transmissão, divulgação ou distribuição de conteúdo, o que inclui receita proveniente de assinaturas, doações, visualizações, patrocínio, publicidade, venda de produtos entre outros.

Quais são os benefícios e limitações da lei para a primeira infância?

Os 40 artigos apresentados na lei são abrangentes em muitos aspectos, e trazem para o âmbito das políticas públicas a demanda de compartilhar, com toda a sociedade, o dever de cuidar e proteger as crianças de todas as idades. 

A garantia de menor exposição a conteúdos impróprios (como sexualização, violência etc), a possibilidade de dar a cuidadores e responsáveis mais ferramentas para protegerem os pequenos, assim como responsabilizar plataformas e serviços de internet, são elementos que devem ter impactos positivos a longo prazo.

Contudo, o conteúdo da lei também traz novos desafios. No caso do controle parental, por exemplo, para que ele seja de fato efetivo é necessário que haja uma alfabetização digital dos responsáveis. Caso não saibam como configurar ou utilizar essas ferramentas de controle, bebês e crianças continuarão expostos a riscos online. 

A legislação prevê que as informações sejam claras e acessíveis, mas para que haja uma eficácia maior, é necessário criar campanhas públicas de conscientização sobre como usar tais dispositivos de controle parental. 

A primeira infância é a etapa de maior desenvolvimento cognitivo entre os humanos. Esse desenvolvimento é sensível e todos os esforços de proteção e cuidados devem ser celebrados e também acompanhados. 

Crianças na primeira infância e uso de telas

Como apontando pela recente pesquisa Panorama da Primeira Infância: O que o Brasil sabe, vive e pensa sobre os primeiros seis anos de vida, realizada pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal em parceria com o Datafolha, bebês e crianças entre 0 e 2 anos têm ficado, em média, 2 horas por dia em frente às telas.  

A porcentagem de crianças entre 4 e 6 anos que são expostas às telas também é alta, de acordo com a pesquisa. O levantamento apontou que 96% das crianças nessa faixa etária interagem com telas diariamente.

Quando essa exposição ocorre em dispositivos móveis com acesso à internet, os riscos são amplos e podem afetar do direito à privacidade ao desenvolvimento da linguagem e da concentração, por exemplo. Além disso, é comum surgir a chamada “parentalidade distraída”, em que os responsáveis, absorvidos pelo uso constante das telas, acabam comprometendo a qualidade das relações estabelecidas com bebês e crianças, que deixam de receber a atenção e os cuidados adequados.

“A sociedade deve entender que as crianças não podem ser controladas pelos conteúdos que veem nas mídias digitais e seus algoritmos. As telas não são fontes de afeto. As crianças precisam de contato olho a olho com os pais, brincar em contato com a natureza”, aponta Evelyn Eisenstein, coordenadora do GT de Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria, em entrevista ao portal da SBP.

Evelyn destaca que, apesar das telas parecerem amigáveis, podem ser impactos profundos sem a devida supervisão, principalmente na primeira infância, quando as crianças estão vivenciando uma fase importante de formação social, física e emocional. 

O cenário evidencia a importância de estruturar e colocar em prática ações eficazes de apoio às crianças na primeira infância, sobretudo diante dos desafios trazidos pela tecnologia e pela internet.

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